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Tuesday, December 4, 2012

"O Mágico": desenhos cinéfilos


Sylvain Chomet materializa, em desenho animado, um argumento de Jacques Tati e, mais do que isso, recria o seu universo visual e temático — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 de Dezembro), com o título 'A cinefilia também se desenha'.

Escusado será lembrar que a história dos desenhos animados dos últimos vinte anos é, sobretudo, made in USA. Mais do que isso: as muitas (e, por vezes, fascinantes) transfigurações impostas pela animação digital passam, no essencial, pelos estúdios americanos, com inevitável destaque para a Pixar. Daí que O Mágico surja como um contraponto, singular e brilhante, que importa valorizar: aqui está um objecto eminentemente europeu, de produção franco-britânica, que aposta em manter uma riquíssima relação criativa com a tradição dos desenhos executados à mão.
O resultado é tanto mais tocante quanto envolve uma calorosa dimensão cinéfila. Ao filmar o argumento legado por Jacques Tati, Sylvain Chomet homenageia o criador do Sr. Hulot [foto], quanto mais não seja pela semelhança física entre a figura do ilusionista e o próprio Tati (há mesmo uma breve sequência em que o ilusionista entra numa sala de cinema onde se projecta O Meu Tio). Mas Chomet não se limita a esse gesto de reverência. Em boa verdade, O Mágico colhe na obra de Tati os seus métodos essenciais de encenação e, em particular, a exploração de cenas relativamente longas, apresentadas de um único ponto de vista.
Daí o carácter heterodoxo do trabalho de Chomet. Num tempo em que muitos filmes (incluindo desenhos animados) confundem a intensidade da acção com a “velocidade” da montagem, O Mágico vem revalorizar a nobre arte da contemplação e, mais do que isso, a sua vertiginosa velocidade afectiva.
E embora muitos aspectos do Natal, em particular do Natal cinematográfico, tenham sido derrotados pelo marketing mais desumano, há que dizer que alguns filmes ainda conseguem recuperar o espírito tradicional das festas. O Mágico é, seguramente, um desses filmes.

Sunday, September 9, 2012

Luz e sombras de Bruce Springsteen (2/3)


[1] Darkness on the Edge of Town (1978), título decisivo na discografia de Bruce Springsteen, regressou às lojas numa fabulosa edição, revista e (muito) ampliada — esta é a segunda parte de um conjunto de textos publicados no Diário de Notícias (20 de Novembro).

A 22 de Maio de 1974, no jornal de Boston The Real Paper, o critico de música Jon Landau escreveu uma das frases mais célebres da história da música popular americana: “Eu vi o futuro do rock and roll e o seu nome é Bruce Springsteen”. Landau reagia assim a um concerto de Bruce no Harvard Square Theatre e o mínimo que se pode dizer é que, como num filme, esse foi o princípio de uma bela amizade: Bruce acabaria por contratar Landau que, além de produzir o seu álbum seguinte, Born to Run (1975), se transformou num fundamental colaborador e conselheiro.
Curiosamente, a frase de Landau surge quase sempre citada de forma incompleta, omitindo as palavras que se seguem: “Numa noite em que experimentei a necessidade de voltar a sentir-me jovem, ele devolveu-me a sensação de estar a ouvir música pela primeira vez.” Na sua perspicácia, o crítico reconhecia em Bruce o poder encantatório de renovar uma promessa lendária da cultura pop: a de viver uma eterna juventude.
Mas os tempos estavam também ensombrados pela irreversível degenerescência da cultura “hippie” e, sobretudo, nos EUA, pela proximidade muito palpável das feridas da guerra do Vietname. Com a reedição de Darkness on the Edge of Town, o álbum de 1978 que Bruce gravou a seguir a Born to Run, podemos redescobrir agora as convulsões dessa época em que, em boa verdade, não havia nenhuma certeza capaz de unificar a música popular anglo-saxónica. O ano de 1977 envolvera mesmo dois acontecimentos de dramático simbolismo: a edição do álbum homónimo de The Clash, celebrando todo o desencanto agreste do movimento punk, e a morte de Elvis Presley (a 16 de Agosto, contava apenas 42 anos), porventura o derradeiro ícone de um imaginário desesperadamente juvenil.
Para Bruce, o momento implicava o confronto com uma encruzilhada cultural e pessoal. Cultural porque a sua ligação a um rock mais tradicional, sempre tocado pela herança folk, parecia fora de moda ou, pelo menos, estranha aos entusiasmos do triunfante disco sound (vale a pena recordar que o filme Febre de Sábado à Noite, com música dos Bee Gees, lançado em finais de 1977, viria a transformar-se num dos maiores sucessos do ano de 1978); pessoal porque restava esclarecer até que ponto o seu labor ficaria encerrado do espaço mais “alternativo” dos dois primeiros álbuns, os magníficos Greetings from Asbury Park, N. J. e The Wild, the Innocent and the E Street Shuffle, ambos publicados em 1973.
A resposta contida em Darkness on the Edge of Town adquiriu um valor tanto mais emblemático quanto o tempo mostrou que pode sintetizar algumas das componentes vitais do universo criativo de Bruce. Por um lado, este é um álbum que celebra a enérgica crueza de um som que teria o seu momento mais popular no lendário Born in the USA (1984); por outro lado, há nele uma dimensão intimista que se viria a ampliar no minimalismo técnico de Nebraska (1982) e também na comovente introspecção desse diálogo com a dolorosa herança do 11 de Setembro que foi The Rising (2002). As sombras a que se refere a canção título surgem, afinal, contrariadas pela luminosidade de canções definitivamente adultas. Em The Promise Land, Bruce canta mesmo: “(...) não sou um rapaz, não; sou um homem / e acredito numa terra prometida”.

Thursday, August 2, 2012

Para redescobrir Phil Ochs


Fenómeno visceral da década de 1960 made in USA, a contra-cultura vai voltar a ter direito a algumas das suas memórias mais genuínas. É isso, pelo menos, que se espera do documentário Phils Ochs: There But for Fortune, de Ken Bowser, a lançar em Janeiro de 2011 nos EUA. Trata-se de evocar Phil Ochs (1940-1976), herói da música folk, indissociável da canção de protesto daquela época, integrando materiais de arquivo e depoimentos, entre muitos outros, de Christopher Hitchens e Sean Penn — para já, ficamos com o trailer.



Tuesday, June 19, 2012

Ute Lemper ou a natureza teatral


Pela sua exuberância, tecida de sofisticação e elegância, Ute Lemper é uma daquelas personalidades que pode evocar um rótulo clássico: uma força da natureza. Assim é, de facto. Mas a sua naturalidade em nada contraria — bem pelo contrário, parece atrair — uma elaboradíssima teatralidade.
Assim voltou a ser no magnífico concerto de domingo, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian. Com a Orquestra Gulbenkian, dirigida por Lawrence Foster, Lemper propôs uma digressão Berlim/Paris em que as memórias germânicas (Weill/Brecht) se envolveram com as deambulações francófonas (Brel, Piaf), para desembocarem no espectáculo made in USA, via John Kander (Cabaret, All That Jazz). O concerto conseguiu ser, assim, uma ilustração perfeita da frondosa pluralidade da arte de Lemper e também, afinal, dos muitos cruzamentos temáticos, estéticos e simbólicos que esta temporada 2010/11, delineada por Risto Nieminen, tem sabido promover.
Em cada tema que interpreta, Ute Lemper convoca uma personagem que é a figura ficcional que o tema impõe, mas também uma espécie de alter-ego que dela se distancia, fruindo, desmontando e relançando todos os seus artifícios (hélas!, não é impunentemente que se convoca Brecht). E foi muito bom sentir o maestro e os músicos a participar nesse jogo de máscaras e emoções — afinal de contas, as ironias do entertainment são coisas muito sérias.

Friday, January 13, 2012

Da televisão como lojinha de horrores

PIETER BRUEGEL, O VELHO
O Triunfo da Morte
c. 1562

Na televisão fala-se mal, não por erro natural, mas por sistema. E quase já ninguém olha para nada... Este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 de Dezembro), com o título 'Lojinha de horrores'.

1. Nas televisões, já quase ninguém evoca o passado dizendo, por exemplo, “há dois dias...”. Mas também ninguém usa a alternativa “dois dias atrás...”. Agora, virou moda dizer “há dois dias atrás...”. O gongorismo da fala contaminou o quotidiano. Repare-se como, em poucos anos, o país inteiro deixou de saber dizer “à última hora...”, triunfando o horroroso linguajar do “à última da hora...”. Esta semana até apareceu, algures, nas legendas de uma série.

2. Há uns anos, as televisões tentaram impor a “colorização” dos filmes a preto e branco. Venderam-se milhares de televisores a cores, bombardeando os consumidores com a ideia de que o preto e branco, horroroso vício do cinema, era um sinal de pobreza expressiva. Será que tais consumidores nunca viram Casablanca? Em todo o caso, o episódio encerra uma lição pedagógica: nas televisões, onde a regra é dar a ver, predomina a inanidade do olhar. Só isso explica que num dos sectores fundamentais do audiovisual, o futebol, as entidades envolvidas (a começar pelos clubes) continuem sem corrigir o uso de equipamentos semelhantes pelas equipas em confronto. Veja-se a confusão televisiva que se estabelece quando as camisolas têm riscas, umas verticais, outras horizontais: aconteceu, recentemente, no Portimonense-Sporting (já tinha acontecido no Sporting-Porto). É bem certo que temos realizadores de jogos de futebol muito competentes. Mas temos também um sistema audiovisual que não sabe avaliar os efeitos mais básicos das suas próprias imagens.

3. Começamos a ficar fartos da “crise”. Da linguagem da “crise”, entenda-se. Massacram-nos com infinitas discussões sobre os horrores que nos esperam e ninguém, em nenhum debate, se atreve a falar de uma evidência que merecia ser questionada: no Natal publicitário, dos relógios aos automóveis de luxo, vivemos em clima de radiosa prosperidade e riqueza. Porque nunca se problematizam os valores que dominam as mensagens publicitárias? Porque não se pensam tais mensagens como elementos incontornáveis das relações sociais e simbólicas? Já ninguém tem gosto em olhar à sua volta?