Tuesday, January 1, 2013

Na morte de Carlos Castro


RENÉ MAGRITTE
A Arte da Conversação
1950

1. A morte do jornalista Carlos Castro, em Nova Iorque, é suficientemente chocante para aconselhar alguma contenção de palavras. O simples pudor implica resistir ao ruído mediático que se instalou, tanto mais que os respectivos discursos envolvem, não poucas vezes, uma lógica de obsceno tribunal popular ou ainda as mais torpes manifestações homofóbicas.

2. Como manifestação colateral, em particular na blogosfera, temos assistido à difusão de um discurso que a si mesmo se apresenta como pedagógico e construtivo. Ou seja, a figura de Renato Seabra (modelo, participante do concurso televisivo À Procura de um Sonho) tem levado à instalação de um curioso fenómeno transversal: seria preciso questionar os valores da fama promovidos pela nossa sociedade mediática...
Dir-se-ia que, para alguns, foi preciso a notícia de uma morte violenta para concluirem que talvez seja altura de questionarmos o mediatismo da fama com que todos os dias somos bombardeados... Ingenuidade ou hipocrisia? De facto, não importa. Muito para além do que aconteceu, ou não aconteceu, entre Carlos Castro e Renato Seabra, a ditadura dos famosos em que vivemos (ou nos obrigam a viver) é um fenómeno cultural cuja brutalidade há muito tempo importa desmontar — em boa verdade, há pelo menos uma década, desde que no ano 2000, através do Big Brother, a sociedade portuguesa começou a ser massacrada pela violência estética e moral dos reality shows.

3. Não se trata de supor, muito menos sugerir, que Carlos Castro morreu por causa dos ideólogos da fama — tal determinismo serviria apenas para prolongar o sórdido maniqueísmo com que esses mesmos ideólogos tratam os mais incautos cidadãos. Trata-se, isso sim, de lembrar que uma sociedade fundamentada na suposta transcendência dos famosos só pode ser uma sociedade cada vez mais desumanizada. Não é preciso morrer ninguém para o compreendermos — basta observar como se vive mal.

Saturday, December 29, 2012

"O Turista" ou o elogio das estrelas


Angelina Jolie e Johnny Depp em Veneza: eis a base possível para reavivar uma cinefilia que ainda se lembra de Hitchcock — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 de Janeiro), com o título 'Entre o humano e o divino'.

Um velho preconceito, especialmente activo nas áreas da música e do cinema, insiste em dizer que os “críticos” abominam as estrelas. Segundo tal preconceito, a estrela seria uma espécie de maná universal que existe como uma espontânea e inquestionável verdade “popular”: na prática, Madonna ou Ana Malhoa, é tudo igual...
Ora, quanto mais não seja porque a mediocridade populista já tem a vida demasiado facilitada, importa recordar uma outra verdade de que o cinema de Hollywood é (continua a ser) um modelar testemunho: ser estrela dá muito trabalho. Não basta fazer pose para a câmara ou expor alguns centímetros de pele nua (embora possamos sempre encontrar cultores de génio em ambas as actividades): a estrela é aquele, ou aquela, que partilha connosco o prazer de simular uma aura divina.
Angelina Jolie e Johnny Depp, além de actores de subtis recursos, sabem gerir como poucos o seu estatuto de estrelas. É desse saber que nasce a energia, e também a salutar ironia, de O Turista. Afinal de contas, vamos também ao cinema para vermos isso mesmo: Jolie a pisar um passeio de Paris como se a sua elegância encerrasse todos os enigmas cosmológicos; Depp cultivando uma sensualidade nonchalante em que pressentimos a fruição contida da inteligência.
Sabemos que Alfred Hitchcock já fez tudo isto, e fez ainda melhor: lembram-se de Ladrão de Casaca (1955), com Grace Kelly e Cary Grant? Em todo o caso, saudemos a serenidade com que o alemão Florian Henckel von Donnersmarck investe o modelo da comédia policial de cariz romântico, recusando a preguiça com que outros tentam disfarçar a incompetência narrativa com a ostentação técnica. Os melhores efeitos especiais de O Turista têm nomes muito humanos: Angelina e Johnny.

Wednesday, December 26, 2012

O invisível segundo Clint Eastwood


Com Outra Vida/Hereafter, Clint Eastwood — o nome de Steven Spielberg surge enquanto produtor executivo — move-se nas paisagens enigmáticas de tudo aquilo que transcende as próprias imagens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 de Janeiro), com o título 'O cinema mostra o que não se vê'.

Afinal de contas, vivemos num mundo com programas de televisão protagonizados por figuras que “comunicam” com o além e “falam” com os mortos... É um mundo em que tais agressões à dignidade humana (de vivos e mortos) existem sem que quase ninguém, nem da televisão nem da política, ainda menos da educação, levante a voz para chamar as coisas pelo nome e denunciar a impostura social e emocional.
É nesse mundo, e para esse mundo, que Clint Eastwood faz um filme como Outra Vida, tendo como base um extraordinário argumento de Peter Morgan (que escreveu, por exemplo, Frost/Nixon). Seguindo três personagens que pressentem algo que transcende o quotidiano, Outra Vida liga-os a experiências impossíveis de dizer, não acessíveis às imagens. Daí o desafio imenso: trata-se de usar o cinema, lendário instrumento do visível, para lidar com o invisível. Como mostrar o que não se vê? Começando por recusar o gratuito dos talk shows que vendem “transcendência” como pastilha elástica. A questão central será, então: como é que um ser humano se relaciona com outro ser humano?
Outra Vida não é um filme religioso, não procura a lógica ou a caução de uma qualquer religião instituída. É, isso sim, um filme sobre o sagrado, entendido como essa intensidade que começamos por sentir, não nos desígnios de qualquer divindade, mas nas alegrias e dores do nosso corpo.
No contexto de um cinema americano por vezes vencido pela “religião” da tecnologia, Clint Eastwood, na senda de clássicos como John Ford, reafirma as singularidades de um olhar enraizado numa militante crença nos poderes do factor humano. E para que não simplifiquemos tudo em clichés, convém acrescentar que a cena do tsunami com que o filme abre resulta dos mais espantosos efeitos especiais que, em muitos anos, foram produzidos em Hollywood.

Sunday, December 23, 2012

'Soundless Wind Chime' chega ao DVD


Um dos mais belos filmes da década dos zeros vai finalmente chegar a DVD numa edição com legendas em inglês. Trata-se de Soundless Wind Chime, primeira obra do realizador natural de Hong Kong, Kit Hung, numa narrativa que cruza figuras e cenários entre o Oriente e o Ocidente, em concreto entre Hong Kong e a Suíça. O filme, que foi exibido na edição de 2009 do festival Queer Lisboa, vai ter edição em DVD no Reino Unido em finais de Fevereiro, pela Pecadillo Pictures.

Thursday, December 20, 2012

Inventar o século XX


Momento maior desta passagem da Philarmonia Orchestra por Lisboa, o Coliseu dos Recreios mergulhou perto de cem anos no tempo para reencontrar obras que ajudaram a definir o que seria, afinal, a música do século XX. Motor fulcral de muitos dos acontecimentos que se lhe seguiriam, A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, foi o terceiro bailado que o compositor viu ganhar forma pelos Ballets Russes entre 1910 e 1913, numa sequência que não só o colocaria na linha da frente dos acontecimentos musicais do seu tempo como influenciaria inúmeros outros seus contemporâneos entre os quais Bartók, de quem o concerto apresentou duas obras, uma delas, O Mandarim Maravilhoso, de 1926. Entre ambas as obras correm sinais de busca de novas formas por caminhos que não os que o romantismo antes tomara, a pulsão do ritmo e a exploração de outras potencialidades do som dos instrumentos ganhando um evidente protagonismo. Esa-Pekka Salonen levou a orquestra a respirar com fulgor estes desafios, a exuberância dos ritmos e o colorido da orquestração ganhando forma em interpretações expressivas de ambas as obras. O programa incluiu ainda a Cantata Profana de Bartók (de 1930), que chamou ainda a palco os cantores Attila Fekete (tenor) e Michele Kalmandi (barítono), revelando uma vez mais a grande forma do Coro Gulbenkian. Uma noite que não deixou dúvidas sobre porque daquela música partiria um século feito de acontecimentos desafiantes.

Monday, December 17, 2012

A casa da fotografia


Começou por ser apenas uma casa dedicada à enorme colecção pessoal que o fotógrafo Helmut Newton legou a Berlim. Mas com o tempo, e pelo alargar do âmbito das suas colecções e pela forma como têm sido programadas as várias exposições, transformou-se num museu da fotografia. O Newton-Sammlung mora junto à estação de S-bahn do Zoologischer Gerten. É um edifício imponente, uma das mais célebres séries de Newton dominando a parede frente à escadaria que acolhe quem ali entra. O rés-do-chão apresenta uma colecção de imagens de Newton, a reconstrução de uma sala de trabalho, as suas câmaras e alguns outros objectos pessoais. No piso intermédio estão expostas séries marcantes da sua colecção. No andar superior, as exposições temporárias. Junto à entrada, no piso térreo, a loja do museu apresenta uma boa oferta de livros de arte em geral, com a fotografia naturalmente em destaque.

PS. Fica a foto apenas do exterior. Lá dentro não é permitido tirar fotografias. "Já foram tiradas uma vez", respondeu a senhora na bilheteira. E tinha razão...

Newton-Sammlung
Jebenstrasse, 2
Metro: Zoologischer garten (várias linhas de S-bahn e U-bhan)

Friday, December 14, 2012

Bud Greenspan (1926 - 2010)


Foi durante várias décadas um dos nomes de referência do documentarismo desportivo nos EUA — atingido há alguns anos pela doença de Parkinson, Bud Greenspan morreu aos 84 anos, no dia de Natal, em Nova Iorque.
A sua ligação com o desporto começou, em 1947, na rádio WMGM (actual WEPN, 1050 ESPN New York), colaborando depois em várias revistas desportivas. Após algumas experiências pontuais, iniciou em 1964 uma actividade regular como realizador: foi nesse ano que rodou Jesse Owens Returns to Berlim (acompanhando Owens de regresso aos cenários dos Jogos Olímpicos de 1936). Em 1967, criou a sua própria companhia, Cappy Productions, Inc.,através da qual produziu mais de duas dezenas de títulos, com particular incidência nas actividades olímpicas — por exemplo, 16 Days of Glory/Los Angeles (1984), Mark Spitz Returns yo Munich (1992), America's Greatest Olympians (1996), Bud Greenspan's Stories of Winter Olympic Glory (2002) e, por fim, Beijing 2008 America's Olympic Glory (2009). Entre as muitas distinções que recebeu, incluem-se um prémio honorário da Directors Guild of America, em 1995, e um outro, um Emmy de 2006, atribuído pela Academia de Artes e Ciências da Televisão.

>>> Do filme sobre os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, eis os momentos que registam a vitória de Carl Lewis na corrida de 100 metros.